Sobre este assunto 'Covid-19', já proliferam por aí muitos 'escritos', recomendações, normas e textos, uns mais ou menos elucidativos e educativos. É importante que o esclarecimento continue e nos indique. Partilho convosco este que me parece lúcido e com uma abordagem que, sem ser técnica (prática), também pode ajudar e iluminar a nossa vida. Não há 'culpas' nem desgraças apontadas, mas reflexão sobre a vida, a nossa vida. Parece-me ser bom para ler e reflectir, como tomada de consciência da nossa realidade e da beleza que podemos ser e dar! (P Luis)
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Covid-19 e espiritualidade:
Oportunidade para reencontrar os outros e a interioridade perdida
Neste tempo de emergência, o que está a nascer de bom é a consciência de
que a minha existência e a dos outros não dependem de mim; não sou eu o dono da
vida. Basta um vírus – ainda que com um nome real – para a colocar em risco. Um
vírus que pode ajudar todos nós a purificar-nos da nossa indiferença diante
deste mistério que a nossa sociedade tenta controlar e por vezes “dominar”
através do progresso científico-tecnológico.
Esta emergência é um convite a servir a vida, antes de mais pondo fim à
superficialidade, à indiferença, ao egoísmo que me faz pôr-me a mim próprio no
centro de tudo; e por isso não esquecendo que tudo é dom. A saúde e o bom
funcionamento, hoje, das células do meu corpo são um dom a redescobrir; nada é
dado como adquirido ou devido.
Talvez a experiência do mal comum nos diga o que é o bem comum, hoje tão
escarnecido e vituperado. Desta emergência pode extrair-se uma lição de
solidariedade: a tua vida é também a minha vida, e eu, com as minhas forças,
colaboro na construção do bem comum. Por isso evito abrir brechas na barragem
de contenção comum com escolhas irresponsáveis, e obedeço às disposições
restritivas, comportando-me com cautela e responsabilidade, porque ao
proteger-me, protejo os mais fracos, os mais expostos: idosos, adultos frágeis,
crianças doentes.
Quem sabe se esta precariedade, o sentido de um “inimigo” que nos ameaça,
não são as cinzas que impomos sobre a nossa existência para nos encaminharmos
para a luz fulgurante da Páscoa, prefigurada pelo Evangelho da transfiguração do
passado domingo. Se acolhermos estas cinzas feitas de limites, renúncias,
medos, cansaços, doença, sofrimento, morte, então poderemos entrar numa
consciência maior, a de sermos envolvidos e responsáveis uns pelos outros, base
do viver civil e do viver cristão. Em cada um de nós está o traço de cada
pessoa; em cada vida entram, de variadas maneiras, todas as existências.
A Quaresma acende uma luz sobre a nossa precariedade: o Evangelho do
primeiro domingo recordava que não só de pão vive o homem. Não podemos viver
transformando tudo em bens económicos; em momentos como estes, damo-nos conta
de que o rei capitalista vai nu, e que também se vive de contemplação, de
beleza, de relações, de sapiência. Vivemos também de vidas doadas para curar os
outros, como são aquelas destes heróis modernos que são os médicos e os
enfermeiros, que sufocam o medo para dedicar-se com abnegação a quem está
frágil e doente.
Estes dias “sem” podem constituir uma oportunidade para nos dedicarmos a
alguma coisa de que normalmente fugimos como se fosse um inimigo: a
interioridade. Pode ter-se tempo para meditar, orar, caminhar, viver a pura
alegria do dom e do agradecimento, viajar interiormente em companhia dos
grandes de cada tempo.
Se acolhido de maneira correta, o “jejum” da missa pode constituir um
caminho inédito para o Absoluto que nos espera. A partir do modelo dos Padres
do Deserto, que viviam e conseguiam caminhar rumo a Deus para além dos ritos e
das fórmulas litúrgicas. Este é o momento de reentrar em si, voltar à interioridade,
ao meu eu que se acende diante do mistério da vida e do mistério de Deus. São
dias para nos sentirmos instados por algo que nos preme por dentro e é mais
quente, mais intenso, mais luminoso do que tudo aquilo que nos preme de fora.
Ermes Ronchi
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