Acolher Deus numa
criança: O Evangelho num abraço
«Chegaram
a Cafarnaúm e, quando estavam em casa, Jesus perguntou: “Que discutíeis pelo
caminho?” Ficaram em silêncio porque, no caminho, tinham discutido uns com os
outros sobre qual deles era o maior. Sentando-se, chamou os doze e disse-lhes:
“Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de
todos.” E, tomando um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse-lhes:
“Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me
receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou”.» (Marcos 9, 33-37)
Jesus
coloca os apóstolos, e nós com eles, sob o juízo desse limpidíssimo e
revolucionário pensamento: quem quer ser o primeiro seja o último e o servo de
todos. De si mesmo oferece três definições, todas em contramão: último,
servidor, criança.
Quem
é o maior? Sobre isto já os doze tinham falado ao longo do caminho. E eis a
maneira magistral de Jesus gerir as relações: não condena os seus, não os
julga, não os acusa, pensa antes numa estratégia para os educar. E fá-lo com um
gesto inédito: um abraço a uma criança. O Evangelho num abraço, que abre toda
uma revelação: Deus é assim, mais que omnipotente, “omniabraçante” (K.
Jaspers).
Jesus
coloca no centro não Ele próprio, mas o mais impotente e desarmado, o mais
indefeso e sem direitos, o mais frágil, o mais amado, uma criança. Se não vos
tornardes como crianças… Jesus desarma-nos e liberta o nosso lado brincalhão,
acriançado. Render-se à infância é render-se ao coração e ao sorriso, aceitar
largar a sua mão na mão do outro, abandonar-se sem reservas (C. Cayol).
Propor
uma criança como modelo do crente é fazer entrar na religião o inédito. O que é
uma criança? A ternura dos abraços, a emoção das corridas, o vento no rosto…
Não sabe de filosofias nem de leis. Mas conhece como ninguém a confiança, e
confia-se. Jesus propõe-nos uma criança como pai, no nosso caminho de fé. «A
criança é o pai do homem» (Wordsworth). As crianças dão ordens ao futuro.
E
acrescenta: quem a acolhe, acolhe-me! Dá um passo em frente, enorme e inacreditável:
indica a criança como sua imagem. Deus como uma criança! Vertigem do
pensamento. O Rei dos reis, o Criador, o Eterno numa criança? Se Deus é como
uma criança, significa que tem de ser protegido, cuidado, alimentado, ajudado,
acolhido (E. Hillesum).
Acolher,
verbo que gera o mundo novo como Deus o sonha. O nosso mundo terá um futuro bom
quando o acolhimento, tema escaldante hoje em todas as fronteiras da Europa,
for o nome novo da civilização; quando acolher ou rejeitar os desesperados, os
pequenos, quer seja nas fronteiras ou à porta da minha casa, for considerado
acolher ou rejeitar o próprio Deus.
A
quem é como elas pertence o reino de Deus. As crianças não são melhores do que
os adultos, também são egocêntricas, impulsivas e instintivas, por vezes até
cruéis, mas são mestras na arte da confiança e do espanto. Sabem viver como os
lírios do campo e os pássaros do céu, curiosas por aquilo que traz cada novo
dia, prontas para o sorriso quando ainda não pararam de enxugar as lágrimas,
porque se confiam totalmente. Ao Pai e à Mãe.
A
criança traz a festa para o quotidiano. Ninguém ama a vida mais apaixonadamente
do que uma criança.
Acolher
Deus como uma criança: é um convite a fazer-se mãe, mãe de Deus. O modelo de fé
será então Maria, a Mãe, que na sua vida não fez provavelmente mais nada de
especial a não ser isto: acolher Deus numa criança. E com isso fez tudo. (Ermes Ronchi)