Na mais recente viagem a Israel com um grupo de paroquianos, visitei Kfar Kana, uma pequena aldeia, a noroeste de Nazaré, hoje habitada por cristãos e muçulmanos, lugar onde, segundo a tradição, Jesus realizou o milagre da transformação da água em vinho. Protegida por altos muros, a atual igreja remonta ao séc. XIX e conserva algumas réplicas das talhas de pedra usadas nos rituais de purificação dos judeus.
De visita ao espaço sagrado, onde ocorreu, por iniciativa de Maria, o inesperado e ditoso «sinal extraordinário» através do qual Jesus livrou o jovem casal da desonra, o pequeno grupo de casais demorou-se na celebração de Ação de Graças. Aquele lugar, sob a abóbada formada por arcos de pedra, era um convite irrecusável a dizer «obrigado, Senhor», porque a dada altura duas histórias encontraram-se como se fossem fruto do acaso e, de repente, como se a água se tornasse vinho, algo de extraordinário acontecera: ambas confluíram num projeto comum, selado mais tarde por mil declarações «para sempre, porque o nosso amor é como uma biblioteca por desvendar e as estações do ano terão o encanto de um amanhecer». Fez-se silêncio e, num silêncio prolongado, disseram de novo, olhos nos olhos, de mãos entrelaçadas, como se fosse a primeira vez, «sim, é para sempre».
Kfar Kana fica perto do grande mar da Galileia ou de Tiberíades, onde os discípulos por diversas vezes saborearam inesperadamente o vinho doce de Cannã. Naquele dia, naquele oásis, também os casais renovaram as promessas matrimoniais e beberam desse vinho cujo rótulo, não enganava, era mesmo das «bodas de Cannã». O milagre é sempre inesperado.
Entretanto, a caminho até Kfar Kana, de sul para norte, atravessámos desertos habitados por caravanas de nómadas rodeados de ovelhas resistentes, cabras esqueléticas e cães manhosos, ladeámos cidades estranhas, montes encimados por fortalezas incríveis, visitámos mercados em ruas sinuosas e estreitas, formados por bancadas de frutas e vegetais de mil cores, onde os odores do incenso se misturavam com os das especiarias. Pareceu-me que em cada banca havia ervas que curavam todas as doenças. Visitámos ainda praças onde, sob a sombra de uma serena palmeira, grupos de homens tomavam chá como se não houvesse amanhã, e, entre as cadeiras e as mesas de uma esplanada, crianças e vendedores ambulantes procuravam avidamente a bondade de um turista, sob o olhar atento de um polícia.
Naquele trajeto contemplámos a materialização de tantas possibilidades. Outros tons, outra linguagem, novos nomes, cenários diferentes. Vidas longínquas e, simultaneamente, tão próximas. Percebemos que a imagem do vinho que foi água é um desafio à transformação substancial dos elementos negativos em positivos. As declarações de outrora, o sim generoso da juventude, como um cadeado fechado numa ponte sobre o Sena, em Paris, enferrujam com o tempo, tornam-se obsoletas e até risíveis. O sim de uma união conhece as variações das paisagens de Israel. E na montanha russa que, por vezes, domina os nossos afetos, a capacidade de sobreviver às crises e transformar a água em vinho reside na possibilidade de deixar que Ele, de novo, se sente à nossa mesa e ordene.
E o inesperado milagre acontece. O sinal de Kfar Kana atualiza-se
P. Nélio Pita
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